José Cardoso Pires

josecardosopiresem rumo aberto e descoberta

Releio Óscar Lopes aqui e ali e, sem saber porquê, um acaso, nada mais, vou até ao T.S.Eliot que tenho à minha frente, naquela estante: surpreendente como os dois, tão distantes um do outro no tempo e em tudo o mais, trocam sinais entre si.

“Aquele cadáver que plantaste no teu jardim já começou a dar fruto?”, pergunta, lá da Eternidade, o mestre de Sweeney Agonists com aquele humor que lhe sabemos.

E Óscar Lopes (ou eu em seu nme, é evidente):
“Qual deles? Gil Vicente? Camões? Fernão Mendes?”

T.S, o genial Old Possum dos gatos imortais e dos Essays on Style and Order com certeza que não conheceu nenhum daqueles portugueses do passado que Óscar Lopes soube trabalhar com um olhar novo e naturalmente lúcido para os reimplantar na paisagem do presente. Mas mesmo sem os ter conhecido alguma vez, Eliot compreenderia essa glória de redescobrir as heranças que fazem a trajectória duma literuatura porque ele próprio disse: “Um homem escreve não só com a sua geração nos ossos mas também com o sentimento de que a literatura do país a que pertence forma, no seu todo, uma ordem simultânea.”

É um artesão precioso de florestas e jardins que ultrapassam os anos e as estações, este T.S.Eliot da Alta Igreja dos Insubmissos. Só isso, tenho a certeza, justificaria que recebesse como um sinal de cumplicidade uma certa confidência de Óscar Lopes onde ele se descreve “a perscrutar as ramagens das árvores densas e a penetrar, através de um dos ramos, ou do seu conjunto [até atingir] um espaço inimitável que sentimos sempre diferente, de momento a momento.”

Sim, a análise criativa está nessa inversão do mistério. No mergulhar na árvore das flores mais revolucionárias até se atingir raízes que se julgavam fossilizadas, tornadas pedra, monumento, mas que é preciso despertar do murmúrio sepulcral que as envolve. A isto Eliot acrescenta que “o que acontece no nascimento duma nova obra de arte é qualquer coisa que acontece simultaneamente em todas as obras que a precederam” - e assim a revelação mais ousada do presente toca o mais intocável do passado. Estremece-o, revê-o, compromete-o, porque na Grande Árvore da Criação cada fruto genial obriga muitas vezes a mergulhar nas raízes mais distantes e aparentemente mais alheias para desencantar as metamorfoses que lhe deram forma.

É por isso, acho eu, que todo aquele que faz a história da Literatura do passado necessita de conhecer com gosto os autores do presente para não a reduzir a um obituário engalanado em adjectivos académicos. E outra coisa: sem imaginação, não se conta a verdade com rigor. Não se cria e não se intui, reflectindo, ao ler e ao investigar; não se agitam as águas, não se levantam pintas (e aí está porque um honesto Teófilo me é tão triste tantas vezes).

Nos 60 anos da Vida Literária de Óscar Lopes inteiramente dedicados aos autores portugueses e muito em particular aos contemporâneos, estas constantes que o tornam exemplar conferem-lhe uma abertura e uma “inquietação” admiráveis na arte – insisto, na arte – de redescobrir e comunicar os vários horizontes das Letras. Sim, com um historiador e crítico ensaísta desta dimensão o estudo da nossa Literatura atingiu uma dignidade superior de coisa viva, questionadora.

Claro: há um rigor de admirável profundidade cultural a privilegiá-lo nesse domínio, já sabemos. Mas, caso raro, raríssimo, é daí que lhe vem também a agilidade criativa do seu modo de ler. Isto é, uma solidez cultural que não se avaliza com exibicionismos de erudição nem se passeia com galhardetes cosmopolitas para ganhar um coro de aplausos magazinescos (afinal, outra face espectacular do “bem pensar” a que ele se refere algures).

Pelo contrário, o modo de formar de Óscar Lopes seduz por rectidão exacta, por uma claridade na escrita que dá a impressão de corresponder a uma decidida experiência de se tornar “corrente”, tal como a construção de certos poetas (Eliot, William Carlos Williams ou, até, Fernando Pessoa) por ser argutamente coloquial, conduz a uma exposição mais viva e a uma mais sedutora reflexão. “A gente fala para entender-se” - Ler e Depois, de Óscar Lopes, começa assim. E continua: “Isso tem a estranha consequência de que a gente também por vezes fala para se desentender.”

Exacto. Comunicamos no fio de uma sintaxe de claridade, a mais difícil, questionando-nos, procurando maturações de observação, desvios, distanciamento “raramente me entreguei a uma curiosidade, ininterrupta, a pular por todos os cantos de uma obra recém-lida” - Óscar Lopes, outra vez - e é assim que uma Obra da maior intervenção literária ultrapassa a pedagogia conformada ou o valor datado para se tornar, ela mesma, uma leitura aventurosa, uma Carta de Rumo e Descoberta com o levantamento de novas cotas e novos meridianos.

É também muito assim que percorro os Sinais e os Sentidos que Óscar Lopes apontou na nossa literatura de agora. Aprendi, lendo-o, coisas da minha escrita, o que é uma felicidade mais que rara na crítica portuguesa. Inquietei-me por vezes; reflecti por via dele sobre o meu traçado novelístico (certos reflexos de behaviourism que me sublinhou, por exemplo), corrigi avaliações e trajectórias doutros escritores.

Por tudo isto é que este Prémio de Honra que lhe foi atribuído me tocou tanto no íntimo. Há algo de mim a iluminar-se de reconhecimento, e muito, mas muito, nem nós sabemos, do conjunto dos escritores de agora que ele percorreu em rumo aberto e tantas vezes deslumbrante.

1996