Manuel Gusmão

manuelgusmaoFazer sentido com Óscar Lopes indo ao encontro do encontro

É evidente que algo se procura quando voluntariamente (e não só) se estende um membro; algo se procura que não é nunca absolutamente certo; mas o intento fixa-se pelo grau de pertinência, e apura-se para o acerto.
Óscar Lopes, A Busca de Sentido, 1995

Fazer sentido com Óscar Lopes. Contra a ausência, a rarefacção e a destruição do sentido, estender os membros próprios – um braço e as mãos, a mão mental, a outra, e a terceira mão que é a mão de (um) outro(s) – e as próteses que nos acrescentam e modificam; tentá-lo ou tenteá-lo; experimentar à última da hora uma torção do corpo no mar da proliferação das significações e resolvê-la na afirmação do sentido que todo o texto que vale a pena projecta e promete, mesmo que só conheça a sua errância, a sua carência.

Mesmo à distância, mesmo às escuras, tu sentes que tocaste algo, tu escutas o ressalto (Maria Gabriela Llansol) daquilo que enviaste às cegas para sondar a tua vizinhança, ou os círculos abertos do espaço-tempo. Insiste por aí – estendes um braço e tocas (fazes) o sentido a desenhar-se; a tecer-se; a ressoar.

Recorda aquela passagem dos Manuscritos económico-filosóficos de 1844, de Marx, em que ele joga com algumas das várias significações da palavra sentido(s): os cinco sentidos e os outros, prático-espirituais; o sentido da música e o sentido para a música - “tal como só a música desperta o sentido musical do homem, tal como para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum sentido, não é nenhum objecto, porque o meu objecto só pode ser a confirmação de uma das minhas forças essenciais, portanto só pode ser para mim assim como a minha força essencial é para sí como capacidade subjectiva, porque o sentido de um objecto para mim (só tem sentido para um sentido correspondente a ele) vai precisamente tão longe quanto vai o meu sentido, pelo que […] somente pela riqueza objectivamente desdobrada da essência humana é em parte produzida, em parte desenvolvida a riqueza da sensibilidade humana subjectiva – um ouvido musical, um olho para a beleza da forma, somente em suma sentidos capazes de fruição humana, sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas”.

Há talvez essências a mais, a suposição de um homem não social é apenas uma ficção táctica para tornar mais impressiva a descrição dos sentidos do homem social; mas o que aqui se esboça é uma antropologia da criação artística, ou uma secção de uma antropologia tout court... Porque as artes funcionam como formas do auto-engendramento histórico e social dos humanos; não?

Confesso que, ao certo, ao certo, não sei o que o(s) sentido(s) seja(m). Mas procuro fazer sentido, com as minhas circunstâncias e os meus interlocutores, cooperantes ou não. Aqui estão, suponho, alguns sinais, pelo menos, desse querer fazer sentido com.
Óscar Lopes, Os Sinais e os Sentidos, 1986

Quando Macbeth diz Life[...] is a tale/ Told by an idiot, full of sound and fury,/ Signifying nothing, ele faz sentido com as suas ciscunstâncias. Quando Faulkner vai buscar a essa frase de uma personagem de tragédia, as duas palavras do título do seu romance The Sound and the Fury, como descrever esse gesto senão como um gesto de “busca de sentido”?

Por este caminho, não tomas o sentido como garantido e fatal? Não dissolves o problema em vez de o resolver? Sabes que não, se postulares o diferimento, se tiveres em conta o que ameaça e desfaz o sentido. Se confiares que o sentido te vem sempre do outro, cooperante ou não. Não precisas de exigir a cooperação, basta-te ires ao encontro de Mijahil Bachtin: “Uma compreensão activa não renuncia a si mesma, ao seu próprio lugar no tempo, à sua própria cultura, e não esquece nada. O importante no acto da compreensão é para aquele que compreende, a sua própria exotopia no tempo, no espaço, na cultura – em relação àquilo que quer compreender. Não se passa o mesmo no que se refere ao simples aspecto exterior do homem que este último não pode ver nem pensar na sua totalidade, e não há espelho, nem fotografia que o possam ajudar nisso; o seu aspectro exterior, só um outro o pode captar e compreender, em virtude da sua exotopia e do facto que é outro.” Mais do que de uma psicologia, é de novo de uma antropologia que se trata.

Poderemos dizer que o sentido nos busca, a nós leitores que o buscamos? E que o lugar do encontro é a quase interminável passagem entre o texto que lemos e o texto que sobre ele escrevemos, esses objectos-entre-sujeitos, reunidos e distintos, o texto que lemos impondo-se ao que sobre ele escrevemos como uma necessidade intratável, enquanto o que vamos tentativamente ensaiando não pode pretender mais do que ser uma contingência do outro.

Tu sabes que só podemos continuar a ler decidindo sobre o sentido, seja essa decisão precária e revogável; a decisão será lábil como lábil é o sentido, mas sem ela, seria ele que se esfumaria.

Acostumado a esta pulsação entre a necessidade da solidão e a de encontro com os outros, confesso, envergonhadamente, que qualquer presença humana me perturba, como se tivesse algum recado pessoal que não sei transmitir-lhe – e essa presença tivesse outro recado seu.
Óscar Lopes, Cifras do Tempo, 1990

Ir ao encontro com alguém, com os textos. Procurar as condições de possibilidade desta frase na medida em que ela parece insinuar que um texto é equivalente a alguém; que um texto é equivalente a um sujeito. Ora, e se não quiseres assumir tal equivalência? Um texto pode estar por um sujeito, resto ou rasto, projecção refractada, objectivação de um para outros sujeitos; mas não é um sujeito; mesmo que este seja também feito de e por textos, são incomensuráveis. Num texto, a presença humana só pode imaginar-se como ordenada a uma forma de presença humana que perturba e queima mesmo sem texto.

E por aqui vai uma ética e uma antropologia. E uma estética e uma política, tentativas históricas, Óscar Lopes, mestre em povoar a solidão. Sim.

Setembro, 2007