José Viale Moutinho

vialemoutinhoUma nota só

“As palavras, quando usadas, escreveu Óscar Lopes em Uma Espécie de Música, servem-nos de mãos, mãos de mil dedos invisíveis, que enredam as coisas e de algum modo as manejam”. Com palavras, afinal, fui aprendendo a viver, a enredar-me nos grandes sentidos da vida colectiva, nas minúcias mesquinhas da vida privada, até nisto que faço e se parece perigosamente com Arte, reconheço. De quando em quando, alguém me chama com um gesto generoso, nem por isso menos peremptório, e pronuncia um nome sobre o qual eu depois terei de me traduzir em palavras, nas tais palavras. E há nomes que são pronunciados muitas vezes, e com rara justiça, com a alegria de todos os convocados para o erudito arraial.

O nome de Óscar Lopes é um deles.

É que nós crescemos à sombra das suas mãos, nas páginas dos seus livros, no exemplo das suas atitudes de cidadão exemplar. Com ele atravessámos os anos amargos, os campos de minas, as paisagens exasperantes, esperanças e, sobretudo, confianças, desencantos e encantos e continuamos a sentir o tempo como nosso, não deixando que ninguém o leve como coisa apenas sua.

Que diabo!, como as mãos de Óscar Lopes desenham tão bem o “sentido que a vida faz”! Cabe-lhe, é bem verdade, a responsabilidade assumida por muitos de nós que o tomámos como guia cívico, pela sua absoluta inteireza.

É verdade, participei em algumas homenagens a Óscar Lopes, nas quais ele respondeu de viva voz ou, quando a saúde já não lhe permitia comparecer, mandava mensagem, que era o documento mais importante, escutado, discutido e disputado da sessão. E como ele sabia estar com os outros, meus amigos! Como tirava proveito para todos de algo em que ele era, em princípio, o pretexto. As vénias e os elogios, para ele sempre foram o menos, a oportunidade é que se trata de algo a não perder.

Habituado como estava a erguer o rosto, um tanto de lado, pela surdez, erguendo também a voz, mesmo por escrito, Óscar Lopes tem sido sempre a lição do Mestre que é. E sempre teve a rara ciência de dar o exemplo de como pôr os pontos nos ii. E, com ele, não há i que se queixe de ter ficado alguma vez sem qualquer sinal que lhe dê uma vida mais intensa.

Recordo-me que, logo a seguir ao 25 de Abril, na natural crise de valores agitados por meio século de fascismo, Camões foi empurrado de um lado para o outro por alguns quantos que não lhe haviam prestado a devida atenção. E, depois, havia aquilo do 10 de Junho com as suas condecorações e discursos sobre a raça, que de evocação camoniana nada tinha. Como jornalista, lá fui bater à porta de Óscar Lopes, para tentar obter um ponto de ordem no que respeitava ao Poeta. Claro, sem mais quê, denunciou a manipulação ideológica da obra camoniana pelo fascismo português, reputando Os Lusíadas e a lírica de algo monumental. Acabou então a discussão, ora essa!

Agora, a glória que me não dispenso é de ter descoberto neste extraordinário leitor de poesia um poeta! Foi quando organizei uma colectânea poética para a Bienal de Cerveira de 1985, A Ilha dos Amores, e pedi um texto introdutório a Óscar Lopes. E ele... bem, ele mandou um poema! Ficámos todos na expectativa de mais versos, mas era matéria reservada, garantiu-nos. Também nunca percebemos como é que aqueles versos deslizaram até nós, aquele “alguém diz tu”!

Quanto ao mais, quem como ele leu Camilo, Eça, Cesário, Fialho, Agustina, Eugénio, Raul Brandão, Cardoso Pires? E o rigor das suas palavras nas tantas sessões do 5 de Outubro e do 31 de Janeiro? E nas maratonas das imprecações eleitorais? A generosidade empolgante do seu estar com os outros como poderia medir-se? E até o seu próprio espírito prático, que pude testemunhar quando integrei a Direcção da Associação Portuguesa de Escritores da sua presidência? Se alguém estava à espera de encontrar nele o intelectual distraído, enganou-se, pois Óscar Lopes era, pelo contrário, o director atento a tudo, responsável e responsabilizador.

É por isso que hoje, quando tenho de escrever sobre ele e começo, muito comodamente, com uns versos assim:

pode já não escutar o que escutou,
mas, voltando as páginas das horas,
tem nas suas mãos uma rosa dos ventos
e as rédeas de um cavalo alado,

como se quisesse escrever um poema, a verdade é que o poema não aparece nas minhas mãos, nem os dedos o conseguem encontrar, por mais palavras que retirem da memória, por mais sentido que apalpem na própria vida.

É que Óscar Lopes é acima de tudo quanto há!

Setembro, 2007